Três histórias reais para refletirmos sobre o assunto:
1. Paciente procura uma psicóloga por ser mãe e católica. Gostava muito da psicóloga anterior, mas não encontrava espaço para falar sobre assuntos ligados à religião. Todas as vezes em que tentou falar sobre a importância da oração ou sobre o significado do casamento, a psicóloga mudava de assunto, buscando a “neutralidade”.
2. Psicólogo não compreende a vivência da castidade por seu paciente cristão. Quando este lhe disse que gostaria de se manter virgem até o casamento, respondeu que isso era uma bobagem, que sexo era algo natural e que seria bom para ele ter outras experiências. O paciente, então, sai da sessão e diz que nunca mais procurará psicoterapia – “porque esses caras são contra a minha fé”.
3. Terapeuta utiliza o setting terapêutico como espaço para pregação religiosa. Um paciente ateu incomoda-se com o excesso de referências cristãs e sente-se coagido, sem perceber uma abertura para falar sobre os seus dramas. Fica indignado ao final da sessão porque o terapeuta lhe aconselha a procurar um padre para se confessar.
E aí? O que você pensa sobre o assunto? Qual foi o erro em cada uma dessas situações?
Recentemente no Clube Allers tivemos um estudo de caso no qual foram levantadas todas essas questões.
Por isso, eu decidi compartilhá-las com você, porque acredito que esta é uma reflexão muito importante para o exercício profissional da psicoterapia.
Será que um paciente só pode ser (bem) atendido por alguém que compartilhe das suas posições políticas, religiosas e filosóficas?
Será que, estando na posição de paciente, eu devo procurar um profissional que pense como eu? Não posso ser bem-atendido por alguém que discorde de mim?
Ou ainda… será que um profissional deve falar sobre as suas convicções com o paciente? Não? Nem se ele perguntar diretamente?
Bem, aqui está a minha posição sobre este assunto:
Compartilhar dos mesmos valores que o seu paciente NÃO É fundamental para o estabelecimento de uma relação terapêutica. É perfeitamente possível atender (ou ser atendido por) pessoas muito diferentes de você e ter um ótimo tratamento.
Eu mesmo, em minha prática clínica, sendo católico, esposo, pai, com um posicionamento mais conservador… atendo muita gente que pensa como eu. Mas também atendo pessoas absolutamente diferentes de mim, e que ainda assim gostam do meu trabalho..
Por que, por causa da neutralidade? Para mim, a “neutralidade” é uma ficção, por mais que se fale muito sobre ela na universidade. Nenhum ser humano é neutro em questões verdadeiramente importantes.
Não acredito em neutralidade: acredito em honestidade intelectual. Não acredito em neutralidade: acredito em uma atuação ética, que respeite a liberdade e a autonomia do paciente e não tente enganá-lo ou coagi-lo.
Mas agir assim não é fácil e não é natural. Todos nós podemos cair na tentação de ir contra a autonomia do paciente e tentar impor os nossos valores.
É compreensível, portanto, o porquê de muitas pessoas procurarem somente profissionais que estejam alinhadas com os seus valores. Existe muita gente machucada por maus profissionais, que usaram do setting terapêutico como lugar de proselitismo político, ideológico, moral, religioso…
Precisamos admitir: é mais fácil ser atendido por pessoas que já estão alinhadas com os seus valores. Isso evita a necessidade de se explicar muitas coisas, pois já existem elementos e referências compartilhadas. O mesmo vale para o “outro lado do consultório”: costuma ser mais fácil para o terapeuta trabalhar com pacientes que compartilham dos seus valores.
De toda a forma… por que nos limitar? Não somos capazes de ajudar pessoas que pensam diferente de nós?
Eu gostaria de te convidar hoje a considerar isso: busquemos sempre a honestidade intelectual e a retidão de intenção, partindo de uma compreensão correta da finalidade da psicoterapia. O setting terapêutico é o lugar de acolhimento e da cura do paciente, o que só será possível se respeitarmos a sua autonomia.
Ao fim e ao cabo, o que posso te dizer é:
Que as nossas crenças não sejam um obstáculo para o nosso paciente.
Independentemente de quem você atenda, coloque o seu máximo empenho e jamais, jamais vá contra a autonomia do seu paciente.
Caso ele traga questões mais espinhosas para a sessão, seja sincero, transparente e respeitoso – mostre qual é a sua posição, não a esconda e não tente manipular o paciente para concordar com você.
Lembre-se que na sua frente está uma pessoa humana.
Esta foi a primeira edição da nossa newsletter! Espero que você tenha gostado.
Notícias da semana
– O tema da aula do Clube Allers foi: “Comunicação terapêutica”.
– Em breve, abriremos inscrições para o curso Primeiros passos do processo terapêutico. Mais informações em breve.
Indicação da semana– A arte do aconselhamento psicológico, de Rollo May. Meus alunos sabem que Rollo May é um dos meus autores favoritos. Nesse livro, o autor reflete sobre a personalidade do terapeuta, a moralidade no aconselhamento e também fala sobre a importância da religião para a saúde mental.